quarta-feira, 31 de julho de 2019

O CORVO E A COVA: uma análise da finitude humana a partir do poema “O Corvo”, de Edgar Allan Poe


O poema “O Corvo” (1845), do poeta romântico norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), narra a história de um viúvo que, durante uma sombria madrugada, recebe uma estranha visita em seu cômodo: um corvo, mensageiro do mundo dos mortos. A ave pousa sob o busto de Palas Atenas – que na mitologia grega é a deusa da Razão – e observa friamente ao viúvo. Este, imediatamente pergunta ao corvo, ave das trevas, sobre o destino de sua finada esposa: Leonora. O viúvo pergunta-lhe também se um dia voltará a vê-la, se tornará a sentir o calor de sua presença e a vitalidade do amor experimentado na juventude, vivido ao lado de sua amada. Mas a única resposta do corvo é um lacônico: "Nunca mais!"
"Nunca mais" é a resposta que o tempo nos dá às recordações passadas. "Nunca mais" é a assertiva inclemente que a vida dá para os abraços sonhados, os amores não dados e os tempos desperdiçados. Bem como há um "nunca mais" para tudo de bom que se foi vivido, e que hoje, não é mais. "Nunca mais" o ontem. "Nunca mais" o hoje. E "nunca mais" será o amanhã vivido como se fosse eterno, pois a lição do corvo de Edgar Allan Poe é esta: a vida se esvai e nunca mais retorna.
O corvo de Poe repousa sobre o busto de Atenas, a deusa da Razão, revelando-nos simbolicamente que, ante a irremediável presença da morte, não há aparelho filosófico e racional que nos faça escapar da mesma ou salvar aqueles que amamos das garras do dia derradeiro. Esta impressão foi notada pela personagem de Machado de Assis (1839-1908), Brás Cubas, na ocasião do funeral de sua mãe: "Era a primeira vez que eu via morrer alguém. Conhecia a morte de ouvir dizer; quando muito, tinha-a visto já petrificada no rosto de algum cadáver, que acompanhei ao cemitério (...). Mas esse duelo do ser e do não ser, a morte em ação, dolorida, contraída, convulsa, sem aparelho político ou filosófico, a morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a pude encarar" [1].
Outra célebre personagem que constatou a inércia da Razão frente ao corvo da morte foi o russo Ivan Ilicht, criado por Liev Tolstoi (1828-1910) em sua obra “A morte de Ivan Ilicht”, que em seu leito de morte reflete:
"O exemplo de silogismo que aprendera no compêndio de lógica de Kieseweter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal — encerrava um raciocínio que lhe parecia exato em se tratando de Caio, mas não da sua própria pessoa. Caio era um homem em geral e devia morrer. Ele, porém, não era Caio, não era um homem em geral; era um homem à parte, inteiramente à parte dos outros seres: ele era Vânia [diminutivo de Ivan], com sua mamãe e seu papai, com Mítia e Volódia, com seus brinquedos, com sua pajem, com o cocheiro, depois com Kátenka, com todas as alegrias, todas as tristezas, todos os entusiasmos da infância, da adolescência, da juventude (...). Caio é de fato mortal e é justo que morra. Mas eu, Vânia, Ivan Ilitch, com todas as minhas idéias, com todos os meus sentimentos — isso é coisa inteiramente diversa. E é impossível que eu tenha que morrer. Seria por demais horrível (...). Ivan Ilitch esforçava-se por desviar o pensamento dela (a morte), mas a maldita continuava a sua obra, chegava, postava-se diante dele e o olhava. Ivan Ilitch sentia-se paralisado, seus olhos se apagavam e ele indagava de novo: 'Será possível que seja ela a única verdade?' (...) Em seus esforços por fugir a esse estado, Ivan Ilitch procurava outras consolações, outros tapumes; e esses tapumes surgiam a um apelo seu e por um breve momento pareciam protegê-lo; mas quase que imediatamente após, sem desaparecer, se tornavam transparentes, como se ela (a morte) os atravessasse, e nada conseguia ocultá-la." [2]
Dessa forma, podemos constatar que para Poe, nem o busto de Atenas (a razão) é capaz de espantar ao corvo sombrio (a morte) e suas cortantes palavras: "Nunca mais". Sendo assim, a lição do corvo ao viúvo de Poe continua atual, em todas as noites, em todos os momentos de fragilidade, em todas as lembranças nostálgicas de um passado bem melhor que o atual presente, e em todas as noites em claro por causa de preocupações futuras: "Nunca mais!". O tempo escorre... E a vida, uma vez que se vai, "nunca mais".

Autor: Arnin Braga







[1] ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Egéria, 1978, p. 75.
[2] TOLSTOI, Liev. A Morte de Ivan Ilitch. Tradução: Marques Rebelo. E-book, cap. VI, pp. 31-33.
*Ilustrações de 1875 do pintor impressionista francês Édouard Manet (1832-1883), feitas para a versão francesa do poema “O Corvo”, de Edgar Allan Poe.


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