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ENTRE
CILA E CARÍBDIS
O drama dos rostos esquecidos da guerra em Síria e no Iraque
Na obra
de Homero intitulada Odisseia podemos
encontrar um episódio emocionante e ao mesmo tempo dramático, na qual o herói
Ulisses e seus companheiros, para poderem retornar a casa depois de anos
viajando pelo mar, devem navegar por um estreito rochoso mortal, onde se
escondem duas criaturas mitológicas monstruosas e assassinas: Cila e Caríbdis.
A primeira habita os altos picos do estreito, atacando com suas várias cabeças
a qualquer embarcação que passa; enquanto que a segunda vive no fundo do mar e
é tão grande que, só o ato de abrir sua enorme boca, provoca um gigantesco
redemoinho que suga para as profundezas todos os barcos que estão próximos.
Ulisses e seus amigos estão em um beco sem saída. Para eles não existe
escapatória: alguns são mortos por Cila, enquanto outros são engolidos por Caríbdis.
Somente o herói Ulisses consegue sobreviver.
Este
dramático episódio da Odisseia não
ficou apenas no mito. Uma analise atenta da história da humanidade é capaz de
constatar que inumeráveis vezes o homem esteve entre “Cila e Caríbdis”, ou
seja, entre duas grandes utopias ou ideologias que, ao entrarem em conflito,
arrastaram a boa parte da humanidade, sacrificando a muitas pessoas por em nome
de seus ideais. Um exemplo não muito distante de nós é a Guerra Fria. Quantas
vidas inocentes foram sacrificadas em vários países devido a constantes guerras
civis entre socialistas e capitalistas, onde cada ideologia tentava construir o
mundo à sua maneira. Atualmente, os dois grandes “monstros” que estão causando
inumeráveis mortes de pessoas inocentes são a chamada “guerra santa”,
empreendida por grupos radicais mulçumanos, como o Estado Islâmico, por exemplo;
e a contraditória “guerra ao terrorismo” praticada pelas potências ocidentais
como União Europeia, Rússia e EUA. Este novo conflito internacional se apresenta
a nós como as novas “Cila e Caríbdis” dos nossos tempos. E infelizmente, assim
como ocorreu com Ulisses e com seus amigos, muitas pessoas estão presas em meio
a estas duas forças antagônicas que fazem a guerra.
Nas
noticias e nos meios de comunicação somos informados frequentemente da morte de
milhares de pessoas por causa deste conflito. Seja em algum povoado perdido do
Iraque; ou em alguma grande cidade da Síria; ou inclusive no coração da Europa
– como foi o caso dos atentados em Paris (13/11/2015) – somos informados em
tempo real da quantidade de mortos e feridos nesta guerra. Cada bombardeio na Síria ou no Iraque, ou a cada
atentado terrorista ao redor do mundo, trazem consigo sua matemática macabra: o
número de mortos. Mas o que são estes mortos para nós? Apenas estatísticas? O
resultado de um cálculo médio que nos aproxima a um resultado exato?
Não são números que morrem nessa
guerra. Nesse conflito morrem pessoas concretas. Morrem rostos que nunca mais
se repetirão nessa terra. E o rosto aqui possui um valor simbólico tremendo: é
a metáfora de nossa condição absolutamente singular, única e irrepetível. O
rosto indica que cada pessoa possui um valor infinito, que não pode ser
manipulado nem instrumentalizado por ninguém. Assim afirma o filósofo judeu, e
sobrevivente do holocausto, Emmanuel Lévinas, em sua obra Totalidade e Infinito:“A
nudez do rosto não é o que se oferece a mim porque o desvelo (...). O rosto
volta-se para mim e é isso sua própria nudez. Ele é por si próprio e não por referência
a um sistema (...). A verdadeira essência do Homem apresenta-se no seu rosto”.
Nunca existiram sob o sol desse mundo dois rostos iguais. Na metáfora do rosto
reside a dignidade do homem, seu valor de ser único e irrepetível. Por essa
razão, nunca estará legitimado o sacrifício nem sequer de uma só pessoa no
altar dos ideais, utopias e ideologias humanas. Neste sentido, podemos chegar a
conclusão de que em cada rosto que morre nessa “guerra santa” ou “guerra contra
o terrorismo”... a humanidade sofre uma grande perda irreparável!
Sendo assim, a metáfora do
rosto proposta por Lévinas e relida no contexto da guerra na Síria e no Iraque
– e em muitos outros países – se apresenta como uma voz que denuncia a
destruição da alteridade e da singularidade de cada pessoa por parte das
grandes ideologias que atualmente matam milhares de homens e mulheres inocentes
em nome da “segurança do Ocidente”, da “guerra contra o terrorismo”, da “guerra
santa” ou “em nome de Deus”. Frente a este conflito injustificável que
acompanhamos nas notícias diárias, a metáfora do rosto nos diz: entre “Cila e
Caríbdis” – entre a “guerra santa” dos grupos islâmicos extremistas e a “guerra
contra o terrorismo” das potências ocidentais – não morrem milhares de pessoas.
Morrem rostos concretos. Rostos que nunca mais serão vistos sob o sol dessa
terra. Rostos sacrificados em nome de grandes ideais fajutos que escondem em si
o desejo de poder e domínio. Rostos que tinham sonhos, defeitos, amores e,
principalmente, uma história! Uma história interrompida, agora esquecida e que
nunca mais se repetirá.
Como dizia Cristian Boltmanski: "Em
uma guerra não se mata a milhares de pessoas. Mata-se alguém que adora
espaguete, outro que é gay, outro que tem uma namorada. Uma acumulação de pequenas
memórias".