quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

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ENTRE CILA E CARÍBDIS
                          O drama dos rostos esquecidos da guerra em Síria e no Iraque


         Na obra de Homero intitulada Odisseia podemos encontrar um episódio emocionante e ao mesmo tempo dramático, na qual o herói Ulisses e seus companheiros, para poderem retornar a casa depois de anos viajando pelo mar, devem navegar por um estreito rochoso mortal, onde se escondem duas criaturas mitológicas monstruosas e assassinas: Cila e Caríbdis. A primeira habita os altos picos do estreito, atacando com suas várias cabeças a qualquer embarcação que passa; enquanto que a segunda vive no fundo do mar e é tão grande que, só o ato de abrir sua enorme boca, provoca um gigantesco redemoinho que suga para as profundezas todos os barcos que estão próximos. Ulisses e seus amigos estão em um beco sem saída. Para eles não existe escapatória: alguns são mortos por Cila, enquanto outros são engolidos por Caríbdis. Somente o herói Ulisses consegue sobreviver.
         Este dramático episódio da Odisseia não ficou apenas no mito. Uma analise atenta da história da humanidade é capaz de constatar que inumeráveis vezes o homem esteve entre “Cila e Caríbdis”, ou seja, entre duas grandes utopias ou ideologias que, ao entrarem em conflito, arrastaram a boa parte da humanidade, sacrificando a muitas pessoas por em nome de seus ideais. Um exemplo não muito distante de nós é a Guerra Fria. Quantas vidas inocentes foram sacrificadas em vários países devido a constantes guerras civis entre socialistas e capitalistas, onde cada ideologia tentava construir o mundo à sua maneira. Atualmente, os dois grandes “monstros” que estão causando inumeráveis mortes de pessoas inocentes são a chamada “guerra santa”, empreendida por grupos radicais mulçumanos, como o Estado Islâmico, por exemplo; e a contraditória “guerra ao terrorismo” praticada pelas potências ocidentais como União Europeia, Rússia e EUA. Este novo conflito internacional se apresenta a nós como as novas “Cila e Caríbdis” dos nossos tempos. E infelizmente, assim como ocorreu com Ulisses e com seus amigos, muitas pessoas estão presas em meio a estas duas forças antagônicas que fazem a guerra.
         Nas noticias e nos meios de comunicação somos informados frequentemente da morte de milhares de pessoas por causa deste conflito. Seja em algum povoado perdido do Iraque; ou em alguma grande cidade da Síria; ou inclusive no coração da Europa – como foi o caso dos atentados em Paris (13/11/2015) – somos informados em tempo real da quantidade de mortos e feridos nesta guerra. Cada bombardeio na Síria ou no Iraque, ou a cada atentado terrorista ao redor do mundo, trazem consigo sua matemática macabra: o número de mortos. Mas o que são estes mortos para nós? Apenas estatísticas? O resultado de um cálculo médio que nos aproxima a um resultado exato?
         Não são números que morrem nessa guerra. Nesse conflito morrem pessoas concretas. Morrem rostos que nunca mais se repetirão nessa terra. E o rosto aqui possui um valor simbólico tremendo: é a metáfora de nossa condição absolutamente singular, única e irrepetível. O rosto indica que cada pessoa possui um valor infinito, que não pode ser manipulado nem instrumentalizado por ninguém. Assim afirma o filósofo judeu, e sobrevivente do holocausto, Emmanuel Lévinas, em sua obra Totalidade e Infinito:“A nudez do rosto não é o que se oferece a mim porque o desvelo (...). O rosto volta-se para mim e é isso sua própria nudez. Ele é por si próprio e não por referência a um sistema (...). A verdadeira essência do Homem apresenta-se no seu rosto”[1]. Nunca existiram sob o sol desse mundo dois rostos iguais. Na metáfora do rosto reside a dignidade do homem, seu valor de ser único e irrepetível. Por essa razão, nunca estará legitimado o sacrifício nem sequer de uma só pessoa no altar dos ideais, utopias e ideologias humanas. Neste sentido, podemos chegar a conclusão de que em cada rosto que morre nessa “guerra santa” ou “guerra contra o terrorismo”... a humanidade sofre uma grande perda irreparável!
Sendo assim, a metáfora do rosto proposta por Lévinas e relida no contexto da guerra na Síria e no Iraque – e em muitos outros países – se apresenta como uma voz que denuncia a destruição da alteridade e da singularidade de cada pessoa por parte das grandes ideologias que atualmente matam milhares de homens e mulheres inocentes em nome da “segurança do Ocidente”, da “guerra contra o terrorismo”, da “guerra santa” ou “em nome de Deus”. Frente a este conflito injustificável que acompanhamos nas notícias diárias, a metáfora do rosto nos diz: entre “Cila e Caríbdis” – entre a “guerra santa” dos grupos islâmicos extremistas e a “guerra contra o terrorismo” das potências ocidentais – não morrem milhares de pessoas. Morrem rostos concretos. Rostos que nunca mais serão vistos sob o sol dessa terra. Rostos sacrificados em nome de grandes ideais fajutos que escondem em si o desejo de poder e domínio. Rostos que tinham sonhos, defeitos, amores e, principalmente, uma história! Uma história interrompida, agora esquecida e que nunca mais se repetirá.
 Como dizia Cristian Boltmanski: "Em uma guerra não se mata a milhares de pessoas. Mata-se alguém que adora espaguete, outro que é gay, outro que tem uma namorada. Uma acumulação de pequenas memórias".


Autor: Arnin Braga
        



[1] LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Editora edições 70: Porto, 2011, p. 61.

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